
A missa comecava sempre a mesma hora e era de uma pontualidade que, em certas ocasioes, chegava a ser perturbadora. Por exemplo, quando morreu Sr. Alfredo, marido de D. Amelia Pinto, a missa decorreu como sempre, numa assustadora tradicao. Os leais fieis mantiveram-se fieis, leais e curiosos, porem calados, apesar da vontade de uns, em saber os detalhes da morte do dito cujo e outros, mais nobres, em consolar sua viúva.
Aquando do nascimento do quinto neto de Manuel Sodre, o dono do mercado que ficava proximo a igreja, a comunidade paroquial ficou em polvorosa porque com mais esse menino perfaziam 15 criancas para serem batizadas num só dia.
Muitas avos, maes e tias comecaram a fazer um grande fuxico acerca da missa de batismo. Estavam tao angustiadas com a futura cerimonia que ja nao dormiam nem comiam direito, a excecao de Terezinha de Jesus, que ria prazerosamente de todas elas quando ouvia seus lamentos e preocupacoes acerca do tal domingo.
Coisa engracada em momentos como esse e o comportamento dos homens num ambiente dominado quase que completamente por mulheres, nao fosse o padre, as criancas do sexo masculino que irao ser batizadas e os pais destas mesmas criancas, mas ainda mais engracado era Terezinha de Jesus, uma senhora muito pobre e humilde, no seio dessa comunidade. Sabia, aconselhava muito a juventude e desejava sempre as meninas, quando, por exemplo, se despedia de uma moca jovem que a tivesse visitado, que esta fizesse um bom casamento. Nestes momentos, Terezinha de Jesus entrava numa especie de transe e suas memorias a faziam lembrar a sorte que teve em sua vida.
Era pobre, analfabeta, nao sabia manejar muito bem os talheres e com um falar tosco conheceu Jose, seu marido e cumplice de uma vida. Fora uma mulher comum, nada tinha ela de extraordinario, nem sequer sua feiura a fazia se destacar, era banal. Contudo, possuia um olhar revelador, que destrinchava bravamente qualquer personalidade que em seu caminho se pusesse. Aprendera a conhecer sua humanidade muito cedo e depois tratou de investigar essa mesma humanidade em seus semelhantes.
Terezinha de Jesus era calma e apesar da ignorancia inicial era dona de uma cultura e classe que abobalhavam ate mesmo os mais credulos. Na realidade, Terezinha de Jesus era um charme so, sua aura elevada sobrepunha qualquer mal-entendido que os preconceitos terrenos, num primeiro momento, sugerissem. Sua aparencia era completamente ofuscada pela violencia com que sua encantora personalidade se manifestava. Daquela trivial caipira saia uma voz tranquila, gostosamente falada e ritmicamente expressada. Seus olhos fixavam seu interlocutor de tal maneira que a pessoa se sentia escrutinada, mas eles, os seus olhos, so estavam interessados em ver seu semelhante, eles queriam ouvir suas lagrimas e reflectir sobre suas eventuais olheiras que grosseiramente sombreavam suas varias faces.
Assim era Terezinha de Jesus, que sentava-se com os joelhos juntos e punha as maos entrelacadas sobre eles tal e qual o protocolo a ser seguido por uma princesa europeia. Terezinha de Jesus era da opiniao que uma mulher deveria, sempre, saber comportar-se, saber estar, como dizem as pessoas. Uma mulher nao deve chorar suas tristezas com qualquer amiga ou vizinha, uma mulher nao pode, em hipotese alguma, contar suas intimidades matrimoniais. Seu casamento e assunto privado e nao devem haver mais de duas pessoas envolvidas nessa questão.
Terezinha de Jesus tambem achava que as mulheres eram muito bobas porque se importavam com o menos importante, o exterior. Quanto mais pintadas pela maquilhagem mais desinteressantes se tornavam aos olhos masculinos. Os homens, pensava Terezinha de Jesus, eram mais inteligentes que as mulheres, mas nao por serem superiores, o eram, simplesmente, porque as mulheres, essas sim, eram burras.
Terezinha de Jesus so conheceu uma mulher inteligente em toda a sua vida, a patroa de sua mae Hermerenciana, D. Joaquina Nunes, mulher casada e mae de dois filhos, esposa de Sr. Emanuel Fernandes, fazendeiro muito rico do interior de Minas Gerais que havia sido educado num colegio interno na Suica. Ele falava um frances perfeito, segundo seus convidados, que enchiam a casa durante os grandes jantares organizados na fazenda. Mas era D. Joaquina Nunes que mais comovia Terezinha de Jesus, seu equilibrio e quietude em meio a toda aquela ostentacao intelectual a deixavam perplexa e admirada. Sua humilde altivez, sua sanidade imaculada e sua simpatia inteligente a arrebataram de uma so vez. Foram meses dedicados a investigacao e reflexao sobre tal curioso caso. Porque sera que D. Joaquina Nunes a fascinava tanto?
Terezinha de Jesus, uma entao menina de 13 anos, rebolava na cama a matutar sobre o assunto, quando um belo dia percebeu que logo depois do almoco D. Joaquina Nunes sumia por duas horas. Nao tinha percebido antes porque nesta altura do dia ia sempre acompanhar as criancas mais novas ao catecismo, mas como padre Antonio havia ficado de cama por causa de uma gripe muito forte e como nao haviam conseguido arranjar um substituto que pudesse comandar a catequese naquele dia, Terezinha de Jesus, para nao se habituar a vida mansa, como dizia sua mae, havia ido ajudar D. Chica com os afazeres domesticos na casa grande da fazenda.
Durante todo o almoco nao tirou os olhos de D. Joaquina Nunes. Foi com esmero que serviu a mesa e com muito cuidado tratou tambem de disfarcar o quao emocionada estava naquele momento. Logo após o almoco, deu conta que D. Joaquina Nunes nao mais estava na sala de estar, a fazer o seu croche.
Desesperada, entrou na cozinha e D. Chica, ao mesmo tempo que ria, tratava de informar a menina, por compaixao, que sua “esperanca” se encontrava no escritorio a ver “ os rabiscos nas foias de parpeli”. A menina correu loucamente para a janela que dava para o escritorio e foi ali que descobriu o sentido de tudo. O segredo estava todo ali, nas maos de D. Joaquina Nunes, que tinha o estranho habito de o ler em voz alta.