quinta-feira, 3 de julho de 2014

Acefalismo



Realmente deixei de pensar, emburreci. Talvez tenha vivido o desfazimento das primeiras fantasias.

Num mundo pós-moderno sem muitas ideologias ou se calhar o inverso, ideologias a mais, o mundo de alguma forma me pareceu fácil. Podia abrir mão de mim, #só#que#não#… sim, vou me dar ao luxo de não ser uma intelectualzinha e me esbaldar nos jargões virtuais.

Pois bem, passados alguns anos e com os primeiros sintomas de maturidade e lucidez vi que caí no erro  de querer ser o que não era.

Percebida a minha incoerência comportamental com a minha essência, constatei o meu emburrecimento e o meu posterior amadurecimento. Passo agora a discorrer sobre as minhas conclusões.

Nos deixamos levar muito por comodismos e prazeres físicos, é não falo de sexualidade, mas de conforto material e acabamos em algum momento por abdicar da nossa natural atitude perante a vida em função disso.

Talvez a minha sorte tenha sido nunca me ter libertado do sentimento de incompletude que carrego comigo, porque me faz nunca aceitar a dependência emocional e me impele a ser uma individualista sentimental nada gregária. Sou natural e imprevisivelmente do contra. Se me amam, não amo. Se não me amam, amo loucamente. Um grande mecanismo de defesa infantil.

Graças a Deus sinto que a fase sadomasoquista com que lidava com o sentimento do amor passou e já chorei meus dissabores. Me sinto mais mulher. Mas capaz de amar. Mas consciente de quem amar e de como amar. Aliás, sempre o soube e talvez por isso até agora nunca tenha vivido um amor. Não o reconheci.

Com certeza, após esta fase de emburrecimento maduro, constato que devemos apreciar nossa singularidade e características. Vale muito a pena exercitar o lado crítico, ler e ver bons filmes. Passou tanta gente interessante por este mundo e o bom é que deixaram pegadas.

Originalidade acima de tudo, futilidades, não por favor. Machismo, não por favor… quero gozar. Feminismo, não por favor, quero que ele goze. Homens sarados, só com parlapier patenteado. Nada mais orgástico que um homem fisicamente normal ou bonitinho que fica cada vez mais sensual e atraente a cada palavra, comentário, ou quando ele dá aquela arqueada de sobrancelha a um comentário seu e joga uma pergunta de retranca para te testar, te “saber”.

Quanto a sexo casual, não obrigada. Quando a gente cresce a gente aprende que sexo é bom quando há sentimento. E quanto ao meu emburrecimento, empacar pode nos fazer pensar e pensar dá um óptimo resultado.



quarta-feira, 24 de abril de 2013

Narizinho








Evelyn sempre soube que os títulos são dados somente no fim do texto. Textos são espontâneos, inatos, natos e têm vontade própria, mas ela também sabia que Narizinho era diferente, ele era o título e o texto a ele se ajustava.

Narizinho possuía um nariz aristocrático, talvez uma herança de seu sangue azul. Era um nariz muito engraçado, não tinha curvas, não tinha nada. Era recto e directo, muito assertivo. Evelyn, talvez por isso, gostasse muito de brincar com narizinho, gostava de extremos e opostos e narizinho tornava os extremos possíveis, ligava uma ponta a outra.

Se Evelyn pudesse, ela diria que Narizinho era muito travesso, muito meigo e engraçado, e que era muito bom ouvir suas piadas. Ela também gostaria de tê-lo acariciado mais vezes, abraçado mais vezes e feito muitas mais perguntas, uma mais ridícula que a outra, como se de um concurso de “ridiculismo” se tratasse.

Se Evelyn soubesse ela teria dito tudo o que sentia. Não teria rido para dentro, teria rido para fora todas as vezes. Evelyn teria partilhado seus sentimentos e demonstrado todo o seu amor. Ela teria dito que adorava o sorriso de Narizinho e que ele a aconchegava sem a necessidade de qualquer palavra.

Tarde de mais Evelyn se apercebeu do amor que sentia. Ele devia ser tão inesperado que ela não soube identificá-lo, deixou-se simplesmente inundar pela emoção de amar e se sentir amada, o que aliás é uma sensação tão boa que a fazia sentir-se abençoada.

Evelyn soube que os amores passados tinham significado, mantinham-se ali, dela faziam parte, mas soube também que eles serviram para sustentá-la até aquele momento, aquele encontro em que tudo começou a fazer sentido.

Por fim, nossa protagonista lamentou-se por sua imaturidade e se apercebeu do quão engraçada a vida pode ser, trágica e cómica. Ela desejou também que tudo tivesse um motivo e um sentido e resolveu acreditar, com muita alegria no coração, que tudo o que tiver de ser algum dia será.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

A feminista




A música estava perfeita, os corpos quentes transpiravam, viam seu suor evaporar e se condensar nas suas peles agora húmidas. Os suspiros profundos, quase de meditação, davam lugar a espasmos cheios de prazer, um prazer quase sádico.
Até aqui o cenário era perfeito. Havia interesse recíproco, havia sensualidade, a atração era animal, os cheiros agradavam, a voz excitava, o olhar arrepiava e enrijecia. Mas, mas há sempre um ‘mas’.
Somos feministas. Sim, somos feministas. Ser feminista é civilizado, avançado. Ser feminista é ser igual, igual a um homem, aos homens. Não foi isso que aquela senhora disse? Aquela francesa que só usava roupas pretas, aquela EXISTENCIALISTA. Qual era mesmo o nome dela?
Entrou no carro, entrou com a segurança que só a ignorância pode dar. Pensou que ser feminista era fazer o que os homens faziam e nem lembrou de perguntar se era mesmo isso que os homens faziam.
-Era isso que os homens faziam?
Ele respondeu-lhe, depois da ereção:
- Que homens?
Era fácil deixar-se levar, tão confortável e… prazeroso. Todos ao seu redor faziam o mesmo e parecia que todos antes deles também o fizeram, e mesmo depois deles haveriam de fazer o mesmo. O que ela não sabia é que o tempo, o antes, o agora e o depois não existem. Nunca houve antes e nunca haverá um depois. Por isso ele riu-se da ignorância dela e sentiu um pouco de pena.
Lambeu o seu pescoço, mordiscou o seu lábio avermelhado e enfiou-lhe os dedos pela vagina a dentro. Ela gemeu como todas as outras antes dela e ele achou engraçado esse traço comum e mundano partilhado por todas as portadoras de uma vagina que teve o prazer de conhecer.
Depois desta noite gloriosa, passou a gemer todas as semanas com dedos diferentes. Ela, que nunca pensou que tamanho fizesse diferença rapidamente percebeu que essa afirmação é relativa.
 Não percebeu quando as coisas começaram a dar errado. Estava pesada, de mal consigo, sem bons convites de gente decente. Acabou por render-se aos tamanhos que conhecia, os únicos que a conseguiam preencher naquele vazio.


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O maverick



Henrique estava esbaforido, fazia um calor infernal na cidade tropical de Luanda. Estava a caminho da escola, era do período da tarde, saía para o intervalo na hora em que a mangueira proporcionava uma prazerosa sombra a meio da tarde.

Gostava muito dos mussulos. Todas as sextas-feiras à noite sonhava com o momento em que pulava do barco e mergulhava com toda a coragem do mundo naquele mar de piscina de água morna e ondas calmas. Sentia sempre uma grande nostalgia quando, aos domingos, voltava à terra firme, à terra da realidade e do calor.

Era um menino meigo, inseguro e muito humanista. Era também franzino, como se tivesse escapado à desgraça do Biafra ao conseguir se refugiar no útero de sua mãe, desta vez numa terra de diamantes e muito petróleo.

Henrique sabia que existia um conceito hierárquico na sua sala de aula. Uma menina mais velha, três anos mais velha que os demais alunos de sua sala, exorciava seus demónios pessoais subjugando os colegas. Henrique cedo percebeu que a sua sala de aula era uma boa representação da natureza humana: grupos que dominam e grupos de dominados. Também ele fazia parte deste sistema humano, mas o milagre, ou a dávida, de se ser criança atribuía a curiosa característica de rotatividade a este sistema. Podia-se ir ao céu e padecer no inferno facilmente, e vice-versa.

Um belo dia, Henrique, que estava no inferno, passou ao purgatório e foi questionado, pelo diabo, a menina três anos mais velha, se aceitava ir ao paraíso com a condição de ter seu lugar infernal substituído por João, seu kamba dos momentos de verdadeira alegria.

O menino, paralisado fisicamente pelo medo, vociferou o seu não, sentindo ora a angústia de um decreto de pena de morte, ora o prazer inenarrável da liberdade e da coragem de seguir as suas convicções.

Henrique foi apunhalado no coração pelos momentos de verdadeira alegria. João permaneceu no paraíso e o nosso corajoso revolucionário no inferno, mas consciente de que trazia dentro de si uma força sobrenatural e inamovível.

domingo, 5 de agosto de 2012

As personas do amor








Ultimamente tenho sentido a necessidade de me personificar na 1ª pessoa. É com certa pena que admito esta vontade, que tem a carga de uma deficiência, mas talvez não seja.

Histórias e estórias eram a única linguagem que gostaria de usar para me expressar no Kilumba, mas a vida é dinâmica e temos que saber respeitar o seu ritmo e mística. Assim me justifico por mais este discurso direto.

A kardecista

O kardecismo é uma corrente filosófica espiritual, não é uma religião, é uma forma de ver a vida. Acredita na evolução do espírito, que encarna e desencarna em busca do seu aprimoramento. O bem e o bom são o fim de todo o processo espiritual. O amor é o único meio possível para se atingir este estado de plenitude, de se chegar ao Nirvana, termo usado pelos budistas.

Sempre tive um grande interesse em compreender as complexas relações amorosas, a ideia de amor, sexo, paixão, sensualidade, ciúmes, loucura. Ouvi muitas histórias de pessoas que sofreram muito por um, ou mais de um, dos substantivos que enumerei acima.

A falta de reflexão, compreensão, a sensação de ausência de lógica, parecem uma onda avassaladora que nos atinge sem nos dar hipótese de salvação. Também eu pensei assim. Mas tudo tem um sentido, toda situação nos permite adotar, escolher um comportamento, uma posição diante dos factos.

Ser racional não é errado. É uma forma, para muitos, de se ter maior consciência sobre a vida, sobre nós e quiçá, sobre os outros. Estamos todos interligados.

Voltando a questão do amor e as suas facetas várias, cito Chico Xavier, célebre médium kardecista que sempre ressaltou a importância do amor. Apresento-vos as simples definições dele para algumas das várias "personas" que o amor pode assumir. Espero que vos sirva para alguma elucidação e melhor destrinche de nossos confusos sentimentos.

Post scriptum: fé cega é sempre perigoso. Questionar sempre. Recado da Rita Lee, uma iconoclasta de fé.


Chico Xavier sobre o amor:




Vida-É o Amor existencial.
Razão-É o Amor que pondera.
Estudo-É o Amor que analisa.
Ciência-É o Amor que investiga.
Filosofia-É o Amor que pensa.
Religião-É o amor que busca Deus.
Verdade-É o Amor que se eterniza.
Ideal-É o Amor que se eleva.
Fé-É o Amor que se transcende.
Esperança-É o Amor que sonha.
Caridade-É o Amor que auxilia.
Fraternidade-É o Amor que se expande.
Sacrifício-É o Amor que se esforça.
Renúncia-É o Amor que se depura.
Simpatia-É o Amor que sorri.
Altruísmo-É o Amor que se engrandece.
Trabalho-É o Amor que constrói.
Indiferença-É o Amor que se esconde.
Desespero-É o Amor que se desgoverna.
Paixão-É o Amor que se desequilibra.
Ciúme-É o Amor que se desvaira.
Egoísmo-É o Amor que se animaliza.
Orgulho-É o Amor que enlouquece.
Sensualismo-É o Amor que se envenena.
Vaidade-É o Amor que se embriaga.
Finalmente, o ódio que julgas ser a antítese do Amor,
não é senão o próprio Amor que adoeceu gravemente.


domingo, 24 de junho de 2012

Parasitismo



Nossos sonhos são condicionados. A felicidade só existe na medida definida pela sociedade, pelo mundo corporativo. Uma casa espaçosa, carro, viagens à Europa, ao Cambodja (sem se saber nada sobre o Cambodja), dois filhos ( um casal, gémeos de preferência), roupa de marca, bolsa Louis Vuitton.

Mas se gostarmos de filosofia, sociologia ou história africana? Neste caso temos que nos contentar com a periferia da cidade, que é marginal e excluída da nata da cidade. Quem quiser oferecer boas condições aos filhos? Que eles possam aprender inglês, francês, que tenham acesso ao mundo das oportunidades?! Neste caso, deve cursar gestão, direito ambiental (está em voga ser green) ou engenharia química. Ter boas relações com pessoas bem relacionadas é um diferencial. Saber fechar os olhos e baixar a cabeça são requisitos eliminatórios.

Conseguir resistir à pressão da rotina corporativa é imperativo, aguentar conversas vazias, comentários maldosos e medir nossas palavras são fundamentais. Segunda à sexta, 8 horas por dia sem pensar no mundo, na fome no Sudão do sul, nas crianças exploradas na Índia, na poluição das fábricas, na ocupação do Tibete, na guerra no Iraque... são danos colaterais.

Chegar à casa exausta e só ter 5 minutos para olhar nossos filhos nos olhos. O amor com o parceiro que nos foi atribuído é maquinal, só sexta-feira conseguimos trazer alguma novidade que fuja da rotina sexual para dentro das quatro paredes, único lugar permitido para se ter sexo.

Nosso emburrecimento é notório, o embaraço nas conversas com os amigos do chefe do marido é doloroso. Nossa vida nos escapa como água por entre os dedos. O envelhecimento da alma é acelerado, a falta de paciência com aqueles que amamos machuca. O parceiro foi o conveniente e agora se colhe os frutos desta decisão: solidão a dois, abandono, fim da sensualidade, do brilho nos olhos.

Aderimos à ditadura da beleza a fim de, quem sabe, reavermos alguma parte da nossa juventude, aquele momento cruel da vida em que temos a "ilusória?" oportunidade de traçar o nosso caminho. Coragem para rebentar as algemas? Mas o que fazer com essa liberdade? E os filhos? E as relações familiares? As contas para pagar? Só resta nos conformarmos. Pensamos novamente nos filhos, desta vez por outro ângulo, e passamos a depositar nossa vida na deles, viver através deles, neles. Nos tornamos parasitas.


Luísa e sua emancipação intelectual




Extremos, porque os extremos? Extremistas, extremismos? Luisa, menina bem educada, católica apostólica romana não praticante, mas ia à missa aos domingos duas vezes por mês. Boa aluna, tinha aprendido a frigidez necessária para uma fêmea humana ser "reconhecida" como mulher digna.

Mas Luisa tinha algo mais, uma curiosidade ambiciosa. Perspicácia para perceber que algo não estava bem, que a desigualdade é um desequilíbrio. Conheceu Beauvoir e soube que era um caminho sem volta, e também ela já não queria voltar.

Percebeu o egoísmo ao qual as mulheres eram subjugadas para mostrar o seu valor. Era necessário desprezar o homem que ela queria, era preciso levá-lo a loucura da espera, era preciso ser diplomada em sadismo para ser vista como uma desejada fêmea-mulher.

Luisa se rebelou, resolveu assumir-se, ser um mulher consciente da sua condição de fêmea. Elevou-se ao próximo nível. O homem que ela desejasse seria amado, teria um pedaço dela, os seus sorrisos, uma parte dos seus sonhos.

Mas Luisa era ela, o nome dela era ela mesma. Luisa era sua dona, consciente, verdadeira. 

Mulheres, Vulgares. Uma noite e nada mais!



Pró-mulher, essa música é pró-mulher. Nossa sociedade comercial deturpa nossos conceitos, isso é ponto assente. Mas existem exercícios, de memória, para que não esqueçamos a definição certa destes mesmos conceitos que o ritmo frenético da "sociedade de informação do séc XXI" deforma por insistência.

Dizem que quem está dentro de uma situação não tem o mesmo poder de análise de quem está fora. Acredito nesta frase. Por isso, mulheres deste século, vamos prestar atenção a mensagem dos homens de verdade. Já que o poder que nasce connosco no meio de nossas pernas nos põe no meio do turbilhão, vamos ouvir quem tem tempo para refletir e analisar melhor a nossa situação.

Que os homens bons nos sirvam como uma bússola de urgência para encontrarmos um esconderijo para nos (re)compormos e compormos o nosso discurso, a nossa (re)estruturação, até as mulheres vulgares passarem a uma espécie em extinção.


Maturação do amor




Como é bom ser amada. Sentir a espera do ser amado chegar, os beijos, os corpos, as almas. É bom ser amado pelo ser que amamos. Frenesi sem fim, pura excitação!

Mas, o amor correspondido pode ser limitador. Temos aquilo que desejamos, e paulatinamente a humildade já não se justifica. Os outros já não importam tanto como antes. Surge o egoísmo?

Quando não correspondido, o amor pode findar. Quando não correspondido, o amor pode amadurecer até perecer. Esse perecer não é morte, ou até pode ser, se morrer significar se transformar.

A transformação é a sua maturação, maturação daquilo que não findou. Quando um amor não correspondido atinge a maturação, é como se ele ultrapassasse a necessidade de ser correspondido.

Eu amo, este amor existe, e por se tratar de amor, a sua existência já basta. Mas, o que é amor? O que pode vir a ser o ato de amar?

Amar... é saber respeitar. Respeitar o amor não correspondido. É querer bem, é saber que aquele amor não correspondido foi a chave que nos levou a libertação, de nós próprios.

Graças a esse amor não correspondido podemos aprender a amar, de verdade. A maturação do amor é intemporal, atemporal, é diária. A maturação do amor liberta, liberta na medida certa.

Erykah Badu




   Não me lembro quando vi o vídeo "Window seat" da Erykah Badu. Lembro do impacto que teve em mim. Foi grande, perturbador. Senti uma certa inveja... me identifiquei. "Não" aos grupos, "Sim" ao direito de nos ausentar, de nos fazer presentes, quando quisermos, quando pudermos.

   Que possamos ter essa felicidade, da compreensão de nos deixarem ir e vir quando pudermos, quando quisermos, sempre que quisermos, sempre que pudermos. Que me amem assim, é o que deveríamos pedir, é o que deveríamos oferecer.

   Que sermos nós não seja difícil, que não seja estranho... Isso vou ensinar ao meu filho, Ondjaki.

sábado, 16 de junho de 2012

A desmistificação




Como nos perdoarmos e nos reinventarmos? Sem dúvida isto alguma vez será necessário, por mais letárgicos que possamos ser. Para alguns será um puro instinto de sobrevivência, para outros, uma evolução pessoal, de maturação.

Não podemos fazer o que nos apetece, é anti civilizacional. Controlar ímpetos e inclinações é o início dessa domesticação do nosso animal interno, porém esta censura só é salutar quando regida por nossa essência, que como dizia Sartre, sucede nossa existência.

Temos formas de nos educar, de sermos responsáveis e conscientes de nós próprios. É no entanto, uma árdua tarefa, diária e implacável. E as virtudes? Tão difíceis de se entender e praticar!

Altruísmo, solidariedade, dignidade, simplicidade e humildade. Tão exaustivas e irreais em muitos momentos. Como tudo seria mais simples se o caos fosse a ordem da vez! A impulsividade realmente nos é algo intrínseco.

Ponderação, auto consciência, responsabilidade e compromisso? Elos de pesado fardo, limitadores e infelicitáveis. Uma prisão contra natura.

Mas, não será exactamente por serem contra natura que nos são tão imperativos? Digo, se nos é algo exterior, ausente de nossa natureza, não serão por isso imprescindíveis ao nosso aprimoramento? Os ingredientes que nos faltam, o que nos completaria?

Alguém disse que isso era tudo uma bobagem, divagações e meras especulações. Afinal, esses filósofos franceses eram todos uns chanfrados e obscenos. Mas vale sermos o que somos, nos aceitarmos e já está, a vida não pára!

E se vivermos muitos anos?! Não será um pouco insuportável vivermos tanto tempo de mal com nós próprios? Quer dizer, viver assim, em negação… nos estapeando antes de dormir com a cabeça na almofada. Sou da opinião de que é um pouco doloroso demais. Com o aumento da expectativa de vida, mais vale começarmos a tentar resolver essas questões, talvez refletir um pouco sobre nós, pensar naquela nossa atitude errada e nos nossos repetidos mesmos erros consecutivos relativos ao mesmíssimo assunto, eles talvez sejam somente uma forma de não esquecermos de analisar de verdade aquela importante questão interior.

E alguém acrescentou… sim, esse tal erro talvez seja um simples pretexto para nos fazer pensar, pensar naquilo que naturalmente não queremos pensar. Não são os naturalismos induzidores ao erro?

domingo, 22 de abril de 2012

A máquina fotográfica




Helena acordava agora da anestesia. Seu parto havia tido complicações de última hora e portanto teve que ser submetida a uma cesariana.Sentiu seu corpo doer de forma abismal, o ventre estava extremamente pesado e os seios latejavam de tão inchados que estavam por estarem cheios de leite para amamentar sua cria.

 Sofia era pequena, linda. Chegou com o lacinho rosa que haviam comprado para aquele momento e vestida com a roupinha de crochê feita por sua avó paterna. Bocejava angelicalmente e contorcia os dedinhos enrugados que não sabia ainda controlar. Foi à ela entregue, a sua progenitora.

 Helena não soube frear esta emoção, não soube sequer analisá-la, limitou-se a senti-la. Uma forte e incomensurável repulsa a invadiu, teve náuseas e horror por aquela criatura que se encontrava em seus braços, que havia saído de dentro de si e que agora instintiva e cegamente procurava o bico do seu seio para se alimentar. Seu desespero foi avassalador. Suas mãos passaram a tremer e a suar, sua boca criou mil e uma rugas à sua volta e seu cenho franziu sorumbaticamente. Quis fugir daquele ser que repudiava grotescamente.

 Neste instante, Gilberto entrou no quarto, trazia um cesto de flores, balões e uma máquina fotográfica. Odiou-o profundamente, sentiu nojo e desprezo por aquele bondoso e trabalhador homem que era o seu marido. A felicidade resplandecente patente em seus olhos foram o golpe final para que a repulsa por ele se instalasse definitivamente em seu âmago.

 Helena pediu a Deus para morrer, lembrou também de seus sonhos de menina, de suas aspirações e desejos. Por fim, sentiu um consternador remorso, estava condenada. Pôs-se a chorar e Gilberto soube captar, prontamente, o momento de suas lágrimas com a sua máquina fotográfica.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Nós e os outros



Nascemos, e em condições normais, seremos amados e educados por nossos progenitores. Aprendemos a experienciar a vida, a codificar percepções e a formular as nossas próprias ideias através desta complexa simbiose.

Porém, pessoalmente assumo as diferenças que nos caracterizam e individualizam como o grande motor de nosso primeiro fatal destino. Digo primeiro porque acredito que o livre arbítrio que gozamos seja poderoso o bastante para que possamos alterar a marcha desenfreada da nossa realidade aparentemente inquebrável.

A felicidade exige competência. Muitos de nós, os humanos, fazemos uso do rico leque de contrariedades que nos desencaminham do bem comum. A falta de apoio moral, de incentivo ao desenvolvimento pessoal e intelectual advindos dos reveses da vida são tidos como determinantes e assim sofremos.Coragem faz parte dos requisitos básicos.

Que os momentos de máxima solidão sirvam como análise. Que nossas falhas nos chamem à realidade do mundo, que o orgulho não nos limite. Que saibamos perder. É também necessário compreender que a felicidade é como nós, única. Portanto comparações sempre nos conduzirão ao erro.

A superficialidade do pensamento só nos permitirá experimentar a vida desta forma, na superfície. Assim corremos o risco de realmente nunca ter sentido a vida na realidade.

Por fim, um exercício diário. E se nós fôssemos o outro?
Este texto não é de minha autoria, porém achei por bem partilhar convosco.




INDICAÇÕES PARA COMBATER A TRISTEZA E MANTER A ALTIVEZ
DA ALMA EM TODA A SUA VIRTUDE

"Aquele que deseja as coisas que são passageiras pode
ser considerado um homem infeliz, ao passo que aquele
cuja vontade se cumpre é um homem feliz."

"Aspirar a felicidade e nos guardar de sermos
desgraçados é possível se fazemos com que nossa
vontade e aquilo que desejamos estejam além daquilo
que nos chega pelo mundo sensível, mutante e instável
e também, se não nos entristecemos com aquilo que nos
escapa do mundo sensível."

"Se não existe o que queremos, devemos querer o que
existe e não preferir a persistência da tristeza no
lugar da persistência da alegria."

"A quem se entristece com a perda das coisas que se
perdem assim como com a necessidade das coisas que se
necessita, a este jamais desaparecerá a tristeza
porque, em todas as situações da vida, perderá objetos
amados e se-lhe escapará aquilo que busca."

"Visto que a alegria e a tristeza não podem coexistir
no mesmo instante na alma, devemos fazer com que
nossas almas estejam satisfeitas em todas as
circunstâncias mediante uma condução correta que
proporcionamos a ela."

"E nessa senda devemos conduzir nossa alma aos
costumes excelentes e acostumá-la a isso até que
forjemos um caráter que torne a vida agradável durante
o tempo de nossa existência."

"Como não podemos nos manter totalmente isentos de
estarmos tristes e como faz parte da natureza
tropeçarmos na tristeza, devemos ao menos ter cuidado
em reduzir o tempo em que ela dura em nós."

"Se realmente houvesse um motivo para nos
entristecermos este deveria ser o da separação de
nosso verdadeiro lugar e de nossa verdadeira pátria,
onde não há carências nem desgraças, nem perdas nem
coisas inalcançáveis"

quinta-feira, 29 de março de 2012

O anfitrião



Não era doce, era obstinado e estranhamente insatisfeito. Dizia-se que assim o era por natureza.

Acordava muito cedo e tomava o café fumegante, cumprimentava as pessoas que, no caminho até o estábulo, ia encontrando e uma vez lá, montava Zeus, seu cavalo puro-sangue.

Era um garanhão negro, de olhos orgulhosos e postura arrogante, ele, no entanto, não o era, possuía algo mais refinado, mais dignificante. Ninguém nunca soube, contudo, encontrar palavra para qualificá-lo, talvez ainda não existisse.

Petrópolis em Julho era sempre enevoada e fria. Os cheiros eram densos e prolongados. O verde circundante renovava os pulmões escurecidos e, portanto, a casa servia-se de muitas presenças e "eus".

Eram épocas alegres, semanas majestosamente vividas e partilhadas. Grandes serões e temas, gargalhadas marcantes, charutos e cigarilhas horrendas, mulheres e homens singulares e, ainda assim, elegantemente comuns, e ele, o anfitrião.

Adorava receber os amigos, ouvir seus pareceres sobre as maiores trivialidades da vida ou sobre as grandes questões da humanidade.

Era gentil, apesar de tudo, jamais foi grosseiro ou ríspido e isso admirava a todos. Nunca se soube comprendê-lo, a ele e aos seus motivos.

Penso que nunca se quis, verdadeiramente, entendê-lo, o que se queria era, vorazmente, transmutá-lo, eliminar aquele elemento nele tão vivo e que feria a todos a sua volta.

Ele era radioactivo, infligia pensamentos angustiantes até com o seu silêncio. Sua incomum natureza atingia a todos que se lhe pusessem a frente e por isso foi punido com o ostracismo natural advindo da ignorância e pequenez humana.

Julho era a excepção, era nesta altura que o seu inquietante e violador silêncio assumia sua poderosa voz.